quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A CULTURA POPULAR NO CONTEXTO DRAMATÚRGICO DE ARIANO SUASSUNA: FARSA DA BOA PREGUIÇA




1. Introdução
Dentro do universo dramatúrgico brasileiro, o teatro de Ariano Suassuna se diferencia pelo seu modo único de criação, o que o reveste de singular originalidade. Em sua obra, o autor mobiliza a literatura popular do Nordeste brasileiro, em associação à literatura que chamamos de “erudita”, passando, ainda, pelo modelo do teatro popular de Gil Vicente. Suassuna transforma paradigmas, manipula e reformula padrões formais e culturais da arte literária, favorecendo o desenvolvimento de um espaço semiótico poderoso dentro da dramaturgia brasileira. Suas obras exploraram uma estética que possibilita uma inovação ímpar dos elementos teatrais.
A literatura popular brasileira tem suas raízes na integração das culturas européia, africana e indígena, que se encontraram no Brasil, no período da colonização e aqui formaram, por meio da miscigenação, o povo brasileiro. Simbolizado pelo mestiço, portanto, o nosso povo caracterizou-se pela mistura de etnias e de costumes.
Na obra de Ariano Suassuna, é nítida a presença da literatura popular, fazendo uma crítica à sociedade e ao catolicismo com uma ampla visão das realidades que envolvem o interior do homem.
Na Farsa da Boa Preguiça (1964), o autor trabalha com a questão do herói e do mito para poder desenvolver toda a trama dramática e suas oposições, como: o bem e o mal; o dia e a noite; Deus e o Diabo; o trabalho e a preguiça.
Por meio do personagem Joaquim Simão, que é um poeta, Suassuna mostra a possibilidade de comunhão entre o trabalho escravo e o criador. O trabalho artístico, nesse caso, é associado à preguiça. O personagem de Aderaldo Catacão – o rico empresário –, por sua vez, ilustra o lado capitalista e burguês da sociedade. Desse modo, a peça se divide em dois Brasis: o do povo e o da burguesia.
Todos os personagens, ao seu modo, são caracterizados por uma brasilidade que é muito presente na obra de Suassuna. Para o autor, a preguiça do poeta Simão, por exemplo, é uma “preguiça do bem”, capaz de transformar a realidade por meio da arte.
Ao apresentar tipos brasileiros demarcados por suas diferenças sociais e de comportamento, Suassuna declara ter pensado, intencionalmente, em atingir o senso comum a respeito do nosso “grande Povo”:
Mas de qualquer modo, não me arrependo de ter feito a distinção sem sutilezas e sem marcar ”horrorosas exceções”. Isso era necessário, porque um dos chavões de que a classe burguesa urbana mais se vale, no Brasil, para falar mal do grande Povo, é o da preguiça e da ladroeira. (SUASSUNA, 1964: 24).

Ariano Suassuna defende a brasilidade e os “gritos nordestinos” em seus trabalhos e, evidentemente, sempre reforça que o cordel é a nossa legítima “Literatura Popular Brasileira”.

2. A LITERATURA POPULAR NO NORDESTE E A “PREGUIÇA” DO POVO BRASILEIRO
A Farsa da Boa Preguiça, como outras obras do autor, foi escrita com base em histórias populares nordestinas e levanta um irreverente questionamento a respeito da preguiça do brasileiro, a partir de elementos da cultura e da religiosidade nacional.
A realidade brasileira entrou em choque com a realidade européia quando os estrangeiros aqui chegaram. Deparando-se com o modo de vida dos povos indígenas que aqui habitavam, achavam estar diante de um povo desprovido de sorte, inocente, sem noção nenhuma de civilidade e pecado, ou seja, para os europeus nossos antepassados indígenas eram pecadores “vadios”, que só serviam para ser utilizados como mão-de-obra escrava. Isso quer dizer que o aborígene foi o primeiro brasileiro a ser conhecido como “preguiçoso”.
O Brasil, desde o início da colonização, traz a marca de ser composto por um povo que “não gosta de trabalhar”, que “vive de festa”, sol, mar e uma rede para descansar. A partir da preconceituosa construção dessa imagem, baseada na visão européia do índio e da mestiçagem, muitos relatos apresentam o nosso povo como um “povo preguiçoso”. A peça de Ariano Suassuna, que aqui nos interessa, também dialoga com este construto, que se perpetuou durante séculos.
O primeiro ato da peça é criado com base numa história tradicional de mamulengo. O segundo ato faz referência a uma tradicional história popular, de um macaco que perde o que ganhara após várias trocas. O terceiro ato, por sua vez, inspira-se no conto popular de “São Pedro e o queijo”.
Na “Licença” da Farsa, numa das estrofes finais do terceiro ato, um dos personagens diz:

Há uma Preguiça com asas,
outra com chifres e rabo.
Há uma preguiça de Deus
e outra do Diabo.
(SUASSUNA, 1964: 334)

O trecho revela, claramente, um questionamento do conceito de preguiça, como pecado original. Para além do simples questionamento, Suassuna demonstrará, no simulacro humano do seu teatro, em que medida a preguiça é atribuída como “defeito” do pobre e “direito” do rico ou do burguês.
Com efeito, a obra não retrata apenas a preguiça, mas, de um modo geral, a realidade da burguesia e suas peculiaridades dentro da estrutura social brasileira. Através dos personagens, fazem-se ligações com figuras do mundo real, escancarando a hipocrisia, os falsos conceitos moralistas e os egocentrismos da sociedade. Essas associações são declaradas por Ariano Suassuna, no ensaio “A farsa e a preguiça brasileira”, que serve de prefácio à peça:
Não é de admirar, porém. Esse é o Brasil oposto ao dos Cantadores, dos vaqueiros, dos Camponeses e dos pescadores. É o Brasil superposto da burguesia cosmopolita, castrado, sem-vergonha e superficial, simbolizado, na Farsa da Boa Preguiça, pelo ricaço Aderaldo Catacão e por sua mulher, a falsa intelectual Dona Clarabela, que fala difícil, comparece às crônicas sociais, coleciona santos e móveis antigos, mantém um “salão”, e discute problemas de “arte formal”. (SUASSUNA, 1964: 23)

Trata-se de um Brasil representando por um povo que incorpora em sua cultura um amplo universo de ideologias e crenças, montando um painel que nos conduz a inúmeras maneiras de entender a estrutura social e cultural do brasileiro.
Simão
Besteira, mulher, oxente!
Eu começo a fazer força
e o que é que eu vou arranjar?
Pra morrer de pobre, o que eu tenho já dá!
E sabe do que mais, Nevinha? Não atrapalhe não,
que eu estou pensando em fazer um folheto arretado!
Quer saber a idéia? É sobre uma gata que pariu um cachorro!
Vai ser tão engraçado!
Ninguém sabe o que foi que houve,
todo mundo está esperado o parto, o gato é o mais nervoso!
No dia, quando a gata pare, em vez de gato é cachorro!
Já pensou na raiva do gato, na surpresa, na confusão?
Que acha? Parece que já estou vendo a capa
e escrito nela: “Romance da Gata que Pariu um Cachorro.
Autor: Joaquim Simão”!
Vou vender tanto folheto, vou ganhar tanto dinheiro!
É coisa para garantir a bolacha dos meninos
para o resto da vida! Que acha?
(SUASSUNA, 1964: 72)

Como podemos perceber nessa fala, Simão inventa, de improviso, um enredo para uma narrativa de cordel, que está ainda na oralidade e que caracteriza uma maneira de construir a literatura através do universo popular lidando com o imaginário, o fantástico e o improvável.
Por meio da personagem Clarabela Catacão, Suassuna traz a representação da linguagem culta de uma mulher intelectualizada para fazer crítica à classe média, mostrando o quanto tal segmento da sociedade pode estar imerso na alienação, a ponto de perder a noção realidade vivida pela maioria dos brasileiros pertencentes a outros segmentos sociais.
Ah, o campo! O Sertão! Que pureza!
Como tudo isso é puro e forte!
Esse cheiro de bosta de boi, que beleza!
A alma da gente fica lavada!
As bolinhas do cabrito, o canto das jurutis,
o cocô dos cavalos, o cheiro dos roçados.
A água pura e limpinha
e esse maravilhoso perfume de chinica de galinha!
Ah, a vida pura! Ah, a vida renova!
A catinga dos bodes, como é forte e escura!
E a trombeta dos jumentos, como é fálica, vibrante e animada!
Ah,o campo! A alma da gente fica lavada!
A vida primitiva em todo o seu sentido!
Dá até vontade de ir à igreja, de se confessar,
de fazer a sagrada comunhão
mesmo sem acreditar nela!
Dá vontade até de não chifrar mais o marido,
Só para não nos sentirmos tão puras quanto o sertão!
(SUASSUNA, 1964: 80)

Nesse trecho, existem várias críticas sendo uma delas social e a outra aos conceitos religiosos da igreja católica. Na visão burguesa de Clarabela, o que há de mais elementar da vida no campo é ridicularizado pelo seu “deslumbre”.
Suassuna usa a linguagem de cordel, poética e rimada, para dar vida aos versos cantados por seus personagens e, através das falas simples, consegue passar com clareza os significados das críticas à sociedade em que vivemos.

Simão Pedro
Sim, mas é de pobreza, não é, Senhor?
Miséria, faz mal, e muito!
Não quero que Simão seja rico, quero somente
que, com o que ele escreve, ganha o suficiente!
O homem é casado e tem quatro filhos:
vive, tudo, nem sei como!
(SUASSUNA, 1964: 135)

Os personagens Andreza, Fedegozo e QuebraPedra representam as forças do mal que travam um duelo com Miguel Arcanjo, Simão Pedro e Manuel, o carpinteiro (Jesus), que representam as forças do bem. Nesse conflito há, portanto, uma interação entre os planos terrestre e celestial.

Fedegoso
Esse já está lascado!
Está sendo levado agora mesmo,
com Clarabela,
para o Poço do Pau-com-Pau,
o lugar mais fedorento do inferno!
E você vai também,
porque foi amante dela!
Simão
Eu fui, mas me arrependi!
Fedegoso
Mas vai! Vai na mesma carrada!
Simão
Vou nada!
Fedegoso
Vai, e sua mulher vai também!
Simão
Agora é que eu sei que não vou mesmo!
Eu, inda podia ser, mas Nevinha?
Não pode ir de jeito nenhum!
Se a Nevinha for pro Inferno,
É de vez que o inferno cai!
(SUASSUNA, 1964: 314, 315)

Nesse trecho da obra, no qual o mal se materializa diante dos personagens, o autor mostra, através do diálogo sobre Nevinha, um dos falsos atributos morais que a mulher, diante dos conceitos religiosos, deve ter como dona de casa e mãe dedicada a fim de alcançar seu lugar garantido nos céus.
Os personagens que representam os diabos e os santos são os que mais carregam as características da dramaturgia “farsesca”, explorada na obra por Suassuna.
Em outro trecho da obra, o autor coloca a integridade de Nevinha à prova, através da tentação de Andreza que tenta atraí-la para Aderaldo, expondo toda a riqueza e o conforto que ele pode oferecer, ao contrário de Simão, que nada tem além dos seus versos e o seu amor.
Andreza
Comadre, deixe de ilusão!
Você não está vendo que aquelas besteiras
que Joaquim Simão faz não vale nada?
Tudo isso, foi coisa arranjada!
Foi Seu Aderaldo que arranjou, para agradar você!
Foi tudo pra ver se você via duas pernas
Um bucho e um pescoço de agrado nele.
Se você não facilita esta perdida a caçada:
você e Joaquim Simão terminam ficando sem nada!
(SUASSUNA, 1964: 62)

Os personagens Clarabela, Aderaldo, Nevinha e Simão são os responsáveis pelo conflito central no qual se busca descobrir qual é o verdadeiro sentido da peça. A preguiça de Simão torna-se uma preguiça necessária para que o poeta possa criar seus versos com harmonia e naturalidade e, implicitamente, para livrar o oprimido do ardor do trabalho insano. Porém, a conduta do rico Aderaldo transforma o trabalho em algo que escraviza e consome a alma humana. Fica a indagação: vale mais o ócio criador, ou o trabalho mecanizado?
Percebemos ser esta uma das grandes questões a serem discutidas na obra Farsa da Boa Preguiça.

2.1. GENÊRO FARSA
Dentro dos aspectos do gênero dramatúrgico chamado de farsa, os personagens possuem uma ligação com as questões humanas mais grotescas, aproximando o homem dos seus desejos mais condenáveis pela moral e pela ética social.
Costuma-se dizer que a farsa trabalha o “baixo ventre”, o que significa os desejos da carne e da matéria.
A farsa, além de tudo, atende aos preceitos do gênero cômico, desde Aristóteles: traz para próximo do público aquilo que o mundo tenta esconder e expõem a crueza e instintividade do homem para o próprio homem.
Por meio da farsa, vários dramaturgos dialogaram e dialogam de forma burlesca com a sociedade, sem se prender muito a padrões e valores.

2.2. DE GERAÇÃO PARA GERAÇÃO
Percebe-se, na obra, a importância que as oposições têm na vida do homem e na sociedade. Suassuna retrata as várias oposições, como o bem e o mal e a riqueza e a pobreza, numa linguagem popular que nos aproxima dos antigos contadores de histórias, das cantigas de roda e das narrações de caboclos, entre outros. Esse repertório também nos aproxima das condições de transmissão da literatura folclórica pela oralidade, de geração para geração, eternizando o universo popular como uma rica e singular forma de cultura, vinda das entranhas de um povo formado por vários povos, o Brasil.
As questões literárias e principalmente dramatúrgicas sempre ocuparam um espaço significativo dentro da construção da sociedade e é através dessas questões que podemos refletir sobre tudo aquilo que nos aflige ou agrada.
A dramaturgia brasileira teve uma fase de esquecimento devido ao período de repressão vivido pela ditadura. Suassuna viveu essa realidade e não deixou de transpor para as suas obras dramatúrgicas tudo aquilo que tinha vontade de dizer.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Temos, representada na obra Farsa da Boa Preguiça, a sociedade de um modo geral: a burguesia, a classe intelectual, os pobres e os artistas, que transitam entre ideais morais e materiais, resgatando o homem de uma longa jornada de crenças e conflitos interiores sociais e religiosos. Nesse sentido, a igreja católica ganha maior foco, talvez por ser a religião mais popular no Brasil e a mais alegórica de que se tenha conhecimento.
A literatura popular tão importante em toda história da humanidade, registrando a trajetória dos povos que transitam e constroem tantas formas de cultura e conhecimento, fez-se presente na peça e foi aproveitada de forma consciente por Ariano Suassuna: como uma legítima homenagem à brasilidade.
A preguiça deixa de ser um pecado capital para se tornar parte fundamental do processo de criação da cultura e da arte, ou seja, o ócio é o combustível que move as grandes transformações do homem historicamente excluído dentro da sociedade brasileira.
Agradecimentos
Este artigo teve como inspiração nosso povo que nos presenteia e enriquece com sua imensa pluralidade de crenças e estórias que são carregadas por séculos por uma cultura popular que não pode deixar de existir, pois é a essência da nossa gente.
Agradecemos a oportunidade de poder degustar, dentre as grandes produções de Ariano Suassuna, a obra Farsa da Boa Preguiça.
Nossos agradecimentos se estendem, também, aos que colaboraram para a elaboração deste trabalho e para a finalização do curso de Letras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEZZON, Lara Crivelaro; CRIVELARO, Lana Paula; MIOTTO, Luciana Bernardo. Manual para Elaboração de Trabalhos Acadêmicos. Edição Especial: Alínea, 2009. 76p.

CASCUDO, Luís da Camara. Literatura Oral no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Itatiaia Limitada, 1978. 435p.

HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 224p.

LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura Oral Popular. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. 73p.

OLIVEIRA, Elinês de Av. e. Ariano Suassuna. Disponivel em
http://www.puc.br/pos/cos/%20cultura/suassuna.htm. Acesso em: 28 nov. 2009.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. 2º ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 440p.

SOARES, Angélica. Gêneros Literários. 6ª ed. São Paulo: Ática, 2006. 85p.

SUASSUNA, Ariano. Farsa da Boa Preguiça. 6ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. 334p.
Cristina dos Santos Brandão
Graduada em Letras – Habilitação em Português e Inglês, pela Faculdade Anhanguera de Indaiatuba – SP.
Juliana Paloma Dourado Daniel
Graduada em Letras – Habilitação em Português e Inglês, pela Faculdade Anhanguera de Indaiatuba – SP.

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